Opinião: O presente inesperado

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: O presente inesperado
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Irineu foi acordado pelo silvo da máquina de hemodiálise avisando o fim da sessão daquele dia. Uma rotina que já se estendia por seis anos, ininterruptamente, três vezes por semana, durante quatro horas. Menos mal. Enquanto a técnica de enfermagem lhe “desligava” da máquina, recordou os eventos que o levaram àquela rotina.

Tudo começou numa sexta feira que prometia ser quente. Quente pelo calor que fazia em Formiga e pela expectativa de muito trabalho na corrida pelas vendas, uma vez que era representante comercial.

Porém, naquela semana não se sentira muito bem. Mal estar, fraqueza, dificuldade para respirar, cansaço, palidez. Na verdade, havia um tempo que não estava bem. Tinha consciência da necessidade de uma consulta médica, mas o corre-corre da vida não lhe dava tempo. Precisava fazer dinheiro para ajudar a família. Filhos na faculdade, dívida de cartão de crédito, o pai doente, necessitando cuidados especiais, fora as despesas diárias que consumiam muito dinheiro. Nada de tempo para cuidar da saúde. Vida que segue...

De fato, seguiu, mas muito diferente do habitual. Mudou tudo, quando Irineu, adentrando um estabelecimento onde pretendia negociar muitos itens do seu estoque, foi acometido por uma forte tontura, vista turva, zumbido nos ouvidos, um leve mal estar no estômago. Naquele momento, teve a certeza de que iria desmaiar. Sorte a dele, pois o gerente da loja, muito seu conhecido, percebeu a mudança em sua aparência e o abordou:

 — Irineu? Você está bem?? Irineu...?!? e nessa altura já foi preciso ampará-lo para que não caísse.

Levado ao pronto socorro, foi atendido imediatamente. Após alguns exames básicos, recebeu a notícia de que seus rins, não estavam funcionando adequadamente e que necessitaria de uma sessão emergencial de hemodiálise. Com esta finalidade, foi transferido para o Nefro Centro, ainda sem entender nada do que lhe acontecia. Ali recebeu um catéter em sua jugular, para acesso imediato da corrente sanguínea, começando a rotina que seguiria até os dias de hoje e que lhe salvava a vida todas as semanas: a hemodiálise.  Mas o que ele descobriu mais tarde, é que aquela sequência de eventos era apenas a “ponta do iceberg”, que indicava que seu organismo estava doente. Soube, então, que a hipertensão arterial e o diabetes mellitus, ambas as doenças sempre negligenciadas por ele, haviam causado Insuficiência Renal Crônica, um diagnóstico aterrador, que o fez dirigir ao médico nefrologista a clássica pergunta: eu vou morrer, doutor?, à qual ele respondeu “não, Irineu, você vai ser salvo pelas sessões de hemodiálise, que farão a filtragem do seu sangue, uma vez que os seus rins tornaram-se incapazes de fazê-lo”. Parecia roteiro de filme de terror.

Os primeiros meses de tratamento foram difíceis. Irineu precisou se adaptar à nova condição. Horários rígidos, medicamentos para o controle do diabetes, da hipertensão, anemia, excesso de cálcio no sangue. Pior: controle da dieta para abolir o sal, diminuir drasticamente a ingestão de líquidos, enfim, começava uma vida nova, muito longe do ideal de prazer e liberdade. A partir dali, dependendo de uma terapia mecânica para substituir seus rins, Irineu precisou repensar e readequar seus hábitos no geral, caso desejasse continuar vivendo. Sendo assim, e não tendo escolha, ele seguiu caminhando nesse sentido.

Porém, seu médico havia lhe dito, que a melhor coisa que poderia acontecer seria um transplante renal. “Seja um rim originário de um vivo ou de um morto, seria a melhor opção para lhe devolver a qualidade de vida, Irineu. Por isso, vamos colocá-lo na fila nacional de transplantes”. Irineu estranhou essa parte. Como poderia viver com um rim de outra pessoa? Do cadáver, seria, no mínimo, macabro. Portar um rim de um defunto, a que ponto chegara! E de um vivo? Expor alguém a esse risco, de extrair um rim de alguém, através de cirurgia, coisa muito arriscada, deixando tal pessoa com apenas um órgão, meu Deus, aquilo não podia estar acontecendo com ele. E ele? Sobreviveria a essa operação? Esse transplante daria certo, sem rejeições? Muitas dúvidas e inseguranças lhe perpassaram pelo espírito. Enfim, após todos os exames necessários, seu nome foi inserido na famosa lista de pessoas que precisam de um órgão alheio para continuar vivo.

No início, aquilo não o afetou tanto, e procurava nem pensar nisso. Mas com o passar do tempo, seu corpo começou a sentir o desgaste provocado pela falta dos rins e pela hemodiálise. Sentia-se sempre indisposto, o trabalho pesava em suas minadas forças físicas. Já não era capaz de trabalhar tanto quanto antigamente, as contas e compromissos pesavam. O rim de um cadáver não aparecia, e ele sentia-se cada vez mais desgastado.

Externando suas queixas ao médico, ouviu um sonoro “não há algum parente seu que possa lhe doar um rim, Irineu?”. Era o que faltava para ampliar o leque de suas preocupações.

— Veja em sua família um parente que possa fazer a doação, pois as chances de você não rejeitar o órgão, são maiores! disse o doutor. Ele saiu prometendo que iria procurar.

Mas as coisas não eram tão fáceis como pareciam. Já havia sondado os parentes mais próximos, e ninguém se dispôs a doar. Entre seus irmãos, a maioria dava desculpas do tipo “tenho filho pequeno para criar, não posso arriscar minha vida”, ou “mas, já pensou se eu doar um rim e o outro adoecer, como faço?”, e por aí seguiam as negativas. Seus pais estavam já idosos, portanto, contra indicados para a doação. Seus filhos... bem, seus filhos simplesmente não quiseram nem conversar sobre o assunto. Parece que o relacionamento entre pai/filhos era muito bom, até ele adoecer. Agora, que ele não mais podia trabalhar como antes; agora, que se tornara para ele, impossível pagar a faculdade, as despesas e as dívidas deles, agora, nada estava bem entre eles. A ex-esposa... bem, a Soninha, melhor nem mexer com ela...

Tudo isso, somado ao desgaste orgânico de Irineu, o deixava extremamente triste. Parecia que a possibilidade de voltar a ter uma vida normal, estava muito remota. Suas forças esvaíam-se a cada semana e também as suas esperanças.

Por isso, ao final daquela sessão de hemodiálise, de mais um sábado, parou em frente à Bíblia, no hall de entrada do Nefro Centro. Rezou, pedindo a Deus que o ajudasse. Que Ele lhe tranquilizasse o coração aflito, mesmo que fosse para partir desse mundo, estava pronto. Havia já passado por maus bocados, e se levantou com fé, então estava tudo bem. Nada esperava a mais dessa vida. Que Deus fizesse o que achasse bom e certo para ele. Feito isso, saiu para continuar a viver mais um resto de dia da sua miserável vida.

Acontece, que aquele sábado não era só mais um sábado comum. Esquecera-se que era seu aniversário! Dirigiu-se para casa, sem muita animação, afinal, comemorar o que?

Ao abrir a porta de sua casa, escutou um sonoro “surpresaaaa!”. Festa surpresa... Mais essa! Haviam pessoas desconhecidas para ele, pois, sua filha caçula havia organizado tudo sem ele desconfiar. “São cinquenta anos, pai, precisa comemorar!”, disse ela abraçando-o.

Em dado momento da festa, houveram discursos, inclusive do aniversariante. Irineu proferiu algumas palavras, agradecendo pela surpresa. Afirmou sentir-se feliz com a presença de todos, entretanto, disse estar desanimado perante a indiferença humana. Relatou sucintamente seu problema queixando-se da falta de informações sobre a importância de doar órgãos e sobre os mitos que existem em torno desse assunto. Formou-se um clima tenso na festa, as pessoas olhavam para baixo, sem saber onde colocavam as mãos. A família fechou a cara. Imperou um silêncio sepulcral. Irineu, então, se desculpou pelo desabafo e mandou que a festa seguisse normal. Mas, como o clima da sua festa voltaria ao normal? Parecia que nunca mais. Naquele momento, arrependeu-se do seu gesto, pensou em deixar a festinha. E foi nesse exato momento, que alguém bateu em seu ombro e lhe disse:

Irineu, meu nome é Afonso —disse um senhor, pouca coisa mais jovem que ele — você não me conhece, nem eu lhe conhecia. Estou aqui acompanhando a Suzane, sua colega de trabalho. Gostaria de dizer-lhe, que tenho um presente para lhe dar. Tenho dois rins muito saudáveis, e tenha certeza: se formos compatíveis, um deles será o seu!

O resto da história você já deve saber: um desconhecido vivo, doou um rim para outro desconhecido, proporcionando-lhe a oportunidade de viver com qualidade, sem nenhum prejuízo para si próprio.

 

PS.: este conto é verídico e é uma homenagem sincera a todos os vivos e mortos que doam um rim.