Opinião: A Exodontia

Ana Dulce Pamplona Frade (de Formiga)

Opinião: A Exodontia
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Dr. Joaquim Bartolomeu Amâncio de Oliveira — mais conhecido pela alcunha de Toletinho — era fazendeiro, e nas horas vagas trabalhava como Dentista. “Dentista não... Cirurgião Dentista! Com diploma e tudo, formado pela Universidade Federal de Minas Gerais!”, dizia ele com orgulho. Toletinho também era muito conhecido na pacata cidade de Formiga, por ser deveras espirituoso e pelo seu senso de humor afiado, ou seja, um tremendo gozador.

Sua inscrição no Conselho de classe de Odontologia tinha 4 dígitos — isso significa que ele era velho. Velho, mas não morto. Por isso trabalhava bastante, aos 65 anos. Tanto na fazenda, quanto em seu consultório, que, na época em que se formou, falava “meu gabinete”. Agora tinha que ser “meu consultório”, pois as coisas haviam se modernizado. A velha estufa que era utilizada para esterilizar seu instrumental, desde que foi proibida a fervura, estava ultrapassada e fora substituída pela autoclave, totalmente digital, operada por sua eterna e fiel assistente, Lucionília, ou simplesmente Luh, aquele tipo de auxiliar que todo Dentista gostaria de ter: adivinhava tudo o que o doutor precisava só com o olhar. O fato é que, o experiente Dentista precisou se adequar ao progresso, graças às exorbitantes multas da Vigilância Sanitária, que o obrigaram a atualizar vários aparelhos de trabalho, e, diga-se de passagem, todos caros, muito caros. Enfim, como ele mesmo dizia, são os ossos do ofício!

Na fazenda também houvera progresso em maquinário, entretanto, não houve o mesmo progresso em seus hábitos. As velhas manias se mantinham. Uma delas era o de bancar o Odontoveterinário (se é que existisse essa especialidade) de seu extenso rebanho bovino, equino, caprino e suíno. Adorava arrancar os dentes apodrecidos deles, drenar seus abcessos, realizar as tartarectomias periódicas (remover o costumeiro cálculo que se forma em torno dos dentes) com um motor especialmente desenvolvido para essa finalidade. Até aí, tudo bem. O problema é que Toletinho também tinha o péssimo hábito de colecionar os dentes que extraía de seus animais. Para isso, os armazenava num baú, também velho, de couro, com uma caveira pintada na tampa. Ele o chamava de Baú do tesouro. Ficava bem escondido da temida Vigilância Sanitária, pois se fosse encontrado, provavelmente seria obrigado a destruí-lo e pagar multa, dadas as péssimas condições de armazenamento: mantinha seus troféus todos misturados, e com o sangue original do animal/paciente.

Certa vez, estava quase finalizando o expediente no consultório, e já não via a hora de ir para a fazenda, a qual, não por coincidência, chamava-se Dente de Ouro. Mas, como sempre acontece com os Dentistas em geral, apareceu uma paciente de última hora pedindo para ser atendida, pois apresentava dor aguda em um dente; dente que, no dizer dela, era um “pilão” (molar).

Depois de muito reclamar com a Luh, por dizer que o doutor estava disponível, ele acabou por atender a referida paciente, que entrou na sala de atendimento com as mãos coladas ao lado esquerdo do rosto, expressando intensa fácies de dor.

Ao examiná-la, Toletinho diagnosticou pulpite serosa, já avançada e lhe disse sobre a necessidade de realizar o tratamento de canal. Ela se recusou. Disse que era um procedimento caro, doloroso e demorado e que preferia arrancar o dente, inclusive, se pudesse ela mesma já o teria arrancado, pois a estava fazendo sofrer e não tinha dinheiro para arcar com um tratamento oneroso e etc etc e etc, a mesma argumentação de quase todos os pacientes.

Muito bem, se era para extrair o bendito e injustiçado dente, que seja agora! 

Tudo preparado, instrumental no equipo, o doutor devidamente paramentado, começou a cirurgia. Sem radiografia para guiá-lo, extrair um terceiro molar é um verdadeiro tiro no escuro: nunca se sabe como vai ser. No entanto, não foi tão difícil. Depois de uma meia hora de muita técnica, força e paciência, o bendito dente saiu a contragosto.

A paciente estava exausta, mas não ousara reclamar, afinal, teimara com o doutor que precisava extrair o dente imediatamente. Ele também estava deveras cansado, não só pelo horário estendido, mas também por ter feito alguma força e precisar pensar em novas abordagens para tirar o dente.

Enquanto realizava a sutura da ferida cirúrgica, reclamava das dificuldades que havia enfrentado com a extração, quando a paciente disse-lhe com a boca cheia de sangue:

—Ora, Toletinho, não reclame, até que foi fácil! Parece que o senhor não teve nenhum trabalho! Nem suou! Não foi tão difícil assim! exclamou ela, com um risinho irônico.

O velho Odontologista indignou-se. Se havia uma coisa que detestava, era quando o paciente desvalorizava seu trabalho. Foi quando se virou para ela em tom de brincadeira e disse:

—O que? Fácil? Está louca? Desde quando EXODONTIA (encheu a boca para falar esse nome) de dente siso é fácil? Gostaria de ver o seu dente?

Ela empertigou-se na cadeira e meneou afirmativamente a cabeça.

E ele: —Pois vou buscar! e virou-se sorrindo pelas costas dela...

Toletinho, então, fez um sinal imperceptível à Luh, que lhe trouxe das profundezas de um armário, e de forma também imperceptível, o famoso Baú do tesouro. O espirituoso Dentista escolheu o maior dente de cavalo que havia ali dentro, enquanto a secretária habilidosa o besuntava com molho de ketchup trazido da geladeira. E, preso assim ao boticão, melado de sangue e molho vermelho, apresentou o troféu à renitente paciente, dizendo:

—Pois veja o quanto foi “fácil” tirar esse seu dente! Veja o tamanho! disse ele sorrindo.

O que se viu a seguir foi o seguinte: o sorriso irônico da paciente derreteu-se e ela arregalou os olhos com tanto terror, que desmaiou! Pior: desmaiou e foi caindo para a lateral da cadeira até bater a boca no chão. Resultado: os dentes da frente fraturados! Os “centroavantes”, como referia-se Toletinho, carinhosamente, aos incisivos centrais.

Resumo da ópera: mais dois tratamentos de canal e duas coroas de porcelana, para a alegria do doutor e para pesar no sofrido bolso da paciente...