Opinião: Renunciou à herança, mas não formalizou isso

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Renunciou à herança, mas não formalizou isso
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Ela, um irmão e a irmã, que faleceu há dois meses, haviam renunciado, em favor da mãe, à herança deixada pelo pai deles, que morrera três meses antes da filha. Quando ocorreu esse falecimento da irmã, já estava posto no processo de inventário o esboço do formal de partilha, com base nessa renúncia dos três.

Porém, a irmã, quando veio a falecer, não havia ainda juntado aos autos do inventário o documento de formalização dessa renúncia, diferentemente dela e do irmão, que já o tinham feito.

Com sua morte, os dois sobrinhos, filhos dessa irmã, embora soubessem muito bem do desejo da mãe, expresso verbalmente em várias reuniões familiares, haviam pedido a retificação do esboço do formal de partilha do avô. Eles alegaram que a mãe era herdeira do quinhão que cabia a ela, já que não havia documento formal da renúncia. Portanto, teria de ser declarado o erro e expedido novo formal de partilha com as modificações devidas.

Em meio à dor da perda do pai, ela teve de lidar com a perda da irmã, porém, como me confessa, o sofrimento maior é perceber que os dois sobrinhos não estão honrando a vontade da mãe. Nunca pensara que não reconheceriam a importância de deixar à avó viúva a integralidade dos bens deixados pelo avô. Esta, mais do que todos os herdeiros, precisaria desses bens para viver dignamente.

Converso com ela sobre o fato de que, quando a morte chega e se vai fazer o inventário do(a) falecido(a), aí é que, muitas vezes, as pessoas se dão a conhecer.  Sofremos menos se transformamos essa situação difícil em oportunidade de aprendizagem. O ganho é saber, a partir desse momento, com quem se está lidando. Cada pessoa tem os próprios valores. Tudo fica mais fácil se aceitamos que alguém querido tem valores diferentes dos nossos. Dessa forma, conseguimos manter os laços familiares.

Ela me diz que terá de se esforçar muito para perdoar aos sobrinhos por não honrarem a vontade da mãe. Pergunta se eles podem ser bem-sucedidos na reivindicação que estão fazendo ao Juízo.

Respondo-lhe que podem, sim. A herança deixada pelo falecido passa aos herdeiros imediatamente após sua morte. Porém, isso precisa ser formalizado, por meio da ação de inventário. A irmã dela, que faleceu durante o processo de inventário dos bens deixados por seu pai, era, sim, dona do quinhão que cabia a ela na herança. Poderia, por vontade própria, renunciar a esse quinhão em favor da mãe.

Contudo, para essa renúncia ser válida e eficaz, era preciso que fosse feita da forma como a lei determina: ela teria de ter sido lavrada em escritura pública (lavrada em Cartório de Notas) ou por termo judicial. Não é suficiente a irmã ter declarado verbalmente essa vontade. Como faleceu durante a ação de inventário e não fez a escritura pública nem juntou aos autos um termo de renúncia, entende-se que ela não exerceu seu direito personalíssimo de renunciar à herança. Assim, a partilha que excluir o quinhão dela certamente será considerada nula, se isso for reivindicado ao Juízo.

Não respeitar as formalidades legais para renunciar a uma herança constitui um vício que, a qualquer tempo, pode levar à declaração de nulidade da partilha. Aceitar uma herança não exige forma definida em lei, mas renunciar a ela, sim, tanto que o herdeiro que faz a renúncia não pode voltar atrás após formalizá-la.

Ela me pergunta se pode ocorrer que a renúncia se torne sem efeito, mesmo tendo sido feita de acordo com as formalidades legais. Pode, sim, quando, por exemplo, alguém renuncia à herança, tentando proteger o patrimônio contra a cobrança de alguma dívida. A renúncia, nesse caso, prejudica o credor que está tentando receber do herdeiro o que lhe é devido. Se o credor alega esse prejuízo, a renúncia pode ser declarada sem efeito.

Pergunto-lhe se ela e o irmão tiveram cuidado quanto à formalização. Ela me confirma que sim. O seu advogado juntou aos autos do inventário do pai um termo de renúncia à herança assinado por eles, com firma reconhecida em cartório.

Então, explico que o quinhão dela e o do irmão retornaram ao monte que seria partilhado, devendo ser dividido entre os que aceitaram a herança. Não havendo formalização da renúncia por parte da irmã falecida, é como se ela tivesse aceitado a herança. Quando se fizer o inventário dos bens deixados por esta, os dois filhos dela serão os herdeiros, portanto se beneficiarão da parte a que ela e o irmão renunciaram.

Ela se revolta. Gostaria de voltar atrás e desfazer a renúncia, pelo menos parcialmente. Digo-lhe que não pode. A renúncia é irrevogável, irretratável e definitiva. Também não pode ocorrer de modo parcial, isto é, não se pode aceitar uma parte da herança e renunciar-se à outra parte. É tudo ou nada. E o tudo já foi feito por ela e pelo irmão. Como renunciantes, são consideradas pessoas que nunca herdaram.

Vejo-a ir embora cabisbaixa. Lamento que a boa intenção dela e do irmão não tenha alcançado o objetivo pretendido. Esbarrou na limitação da promessa feita apenas oralmente. Os sobrinhos não honraram a promessa feita no “fio do bigode”.

 

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

maluoliveiraadv201322@gmail.com