Opinião: Crianças e adolescentes não são descartáveis
Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)
Estávamos em Gramado, acomodados em um restaurante tranquilo, enquanto, lá fora, caía uma chuva fininha. Parte da linda decoração de Natal podia ser vista pela janela. À mesa, alguém comentou que as luzes e a arquitetura da cidade remetiam a lugares da Europa. Logo, outra pessoa acrescentou que também os preços pareciam ter sido calculados segundo o câmbio europeu. Todos nós rimos, embora o bolso já estivesse sofrendo. Tudo era muito caro ali, porém era inegável que cada minuto da viagem estava sendo válido.
Levantei-me para acompanhar ao banheiro uma das companheiras de viagem, por isso não sei o que fez o tema da conversa mudar. Quando retornamos, vi que o assunto era adoção. Um dos presentes estava contando a história de um casal amigo que havia sido processado pelo Ministério Público por ter devolvido ao abrigo de menores o menino que estava sob sua guarda, em um procedimento de adoção.
A polêmica tomou conta da mesa. Um dizia que nunca adotaria uma criança que não fosse bebê; outro, que não adotaria ninguém de nenhuma idade; outro, que achava importante adotar, porque há muitas crianças precisando de um lar; outro, que era um absurdo alguém tentar fazer o bem e ainda ser penalizado judicialmente por isso...
Passamos a ouvir relatos acerca de adoções bem-sucedidas, em que adotantes e adotados se entrosaram e formaram uma família feliz. É claro que também não faltaram relatos sobre as dificuldades enfrentadas por casais adotantes, assim como sobre mulheres que não conseguiam engravidar de jeito nenhum e, tão logo adotaram uma criança, descobriram-se grávidas.
Parecia que o ponto inicial da conversa seria esquecido, mas alguém voltou a ele. Afinal de contas, por que o casal resolvera devolver a criança ao abrigo? Nosso amigo explicou que se tratava de um menino de dez anos, que estava recolhido há pelo menos cinco anos no abrigo. Já tinha um histórico de rebeldia, creditada ao fato de que dos quatro irmãos apenas ele continuava no abrigo. Os outros tinham sido adotados, cada um por uma família.
Perguntei se o casal sabia desse histórico antes de tomar a decisão de pedir a guarda do menino, se tinha consciência de que se tratava de uma pessoa com dificuldade de lidar com regras. Nosso amigo disse que sabia sim, mas que a convivência entre os três, durante o período de apadrinhamento, fora tranquila, que chegaram, inclusive, a viajar juntos.
Dirigindo-se a mim, alguém perguntou como funcionava o apadrinhamento. Expliquei que, para desenvolver vínculos afetivos entre pessoas da comunidade e crianças e adolescentes acolhidos em abrigos, existe o programa de apadrinhamento afetivo. Os interessados em se tornarem padrinhos ou madrinhas visitam o abrigado, desenvolvendo com ele uma relação de afeto e confiança. Dão a ele suporte emocional e orientações, procurando minimizar seu sofrimento por viver afastado de sua família de origem.
Podem levar o abrigado para passar o final de semana com eles, depois de averiguadas por algum técnico do abrigo as condições da casa em que moram e se o ambiente familiar é seguro.
“Esse casal passou mesmo por esse período de apadrinhamento?” – alguém perguntou. Nosso amigo disse que sim, que foi após esse período que foi requerida ao Juízo a guarda do menino. Contou que, apesar de alguns episódios de desobediência, ao longo de um ano desde a guarda, conviveram bem.
Contudo, um fato novo mudou isso. Após esse ano da guarda, a mulher engravidou. A chegada do bebê estremeceu a relação entre os três, pois a atenção dela se voltou para o recém-nascido. O menino não soube compreender isso, sentiu-se deixado de lado. Isso intensificou sua rebeldia. Cansados de tentar colocá-lo nos eixos, devolveram-no ao abrigo.
Por poucos segundos, o grupo silenciou. Acredito que intimamente cada um pensava que, se o casal sabia do comportamento rebelde do menino e, mesmo assim, resolvera pedir sua guarda, deveria ter assumido seu papel de pai e mãe e tido paciência.
Nosso amigo continuou seu relato. Contou que, pouco tempo depois, o casal foi surpreendido por uma ação ajuizada pelo Ministério Público. Nessa ação, ficou comprovado que o menino passou a ser hostilizado e humilhado. Tudo indicava que os adotantes não souberam lidar com sua desobediência e que não lhe deram afeto nem atenção depois da chegada do bebê. Os relatórios psicossociais mostraram que, depois que foi devolvido ao abrigo, ele se tornara triste e calado. Diante dessas constatações, o casal foi condenado a pagar uma indenização por dano moral a ele.
Comento que é possível desistir da adoção durante o estágio de convivência, mas, se o insucesso dela se der porque os adotantes agem de forma imprudente ou negligente, causando ou acentuando o sofrimento da criança ou adolescente, podem, sim, ser responsabilizados pelo dano moral causado.
O estágio de convivência não é tempo para os adultos decidirem se adotarão ou não – isso já deve ter sido decidido antes. É tempo para se observar se a criança ou o adolescente se adaptam ou não ao novo lar.
Quem se dispõe a uma adoção tem de estar ciente da sua responsabilidade, pois pais adotivos têm os mesmos direitos e obrigações existentes na relação biológica. Se não tomam os cuidados necessários antes de tomar sua decisão, afetam a própria vida, mas muito mais a da criança ou do adolescente. O despreparo e a inconsequência dos adultos podem gerar grave sofrimento psíquico. Crianças e adolescentes são seres humanos, e não objetos sujeitos a devolução.