Opinião: Empregada doméstica em Formiga

Lúcia Helena Fiúza (de Belo Horizonte)

Opinião: Empregada doméstica em Formiga
Lúcia Helena Fiúza é professora aposentada




Auxiliar do lar ou empregada doméstica. A nomenclatura não importa, o que se sabe é que mocinhas formiguenses sempre levantam cedo para cumprir uma tarefa que pode durar anos sem evolução e sem expectativa de nada.

Acompanhei com atenção há alguns meses a denúncia que “O Pergaminho” fez sobre a existência de “cativas” em várias famílias tradicionais formiguenses. Sobrenomes tidos como nobres levavam garotas ainda crianças para trabalhar em suas casas e alegavam que “pegaram pra criar”. Era a mão de obra mais barata do mundo, tipo escravas mesmo. Não tinham salário, ajudavam na criação dos filhos da dona da casa, levavam para escola e, muitas vezes, davam de mamar. Eram iludidas como se fizessem parte da família. Lorota.

Em nossa casa, papai, como funcionário da Rede Ferroviária, poderia pagar uma “auxiliar” para ajudar mamãe no dia-a-dia, mas eu e Cecília, minha irmã mais velha, sempre fizemos as vezes, nunca precisou.

Bom… nunca precisou até que mamãe sofreu um piripaque e teve de fazer às pressas uma cirurgia de catarata. De uma hora pra outra tudo embaçou e como Cecília já trabalhava nas Casas Pernambucanas, que ficava onde passou a ser a Mobiliar, na Praça Getúlio Vargas, não teve jeito, tivemos de contratar alguém para ajudar.

Moradora antiga da Rua Nova, Dona Célia Vilela foi amiga de mamãe desde quando nos mudamos pro Bairro do Rosário. Ela já tinha mais de 60 anos quando eu e Cecília combinamos de ela trabalhar em nossa casa por três meses até mamãe melhorar.

Dona Célia era uma mulata alta e esbelta, usava sempre um lenço no cabelo, falava alto e tinha uma gargalhada contagiante. Mãe de três homens, sempre trabalhou em “casas de família”, como dizia. Experiente e de confiança, era a pessoa ideal.

Diferentemente daquela pessoa alegre que conhecíamos, Dona Célia mudou completamente sua maneira de ser assim que foi trabalhar lá em casa.  Estranhamente, não abria a despensa de mantimentos sem perguntar se podia, não comia só uma fruta, um pedaço de rosca ou de bolo se não lhe fossem insistentemente oferecidos, não ia à copa enquanto estávamos almoçando e parecia se ofender se a gente chamasse para sentar. Aquela sua deliciosa gargalhada sumiu e sua voz baixou o volume. A gente não entendeu sua mudança, mas ela foi respeitada.

Passados os três meses, mamãe se recuperou e, como um toque de mágica, a gargalhada de Dona Célia voltou, ela colocou a voz de novo no último furo e voltou a abrir a geladeira sem cerimônia como sempre fez.

É claro que quisemos saber o porquê de ela ter mudado tanto quando trabalhou lá em casa. Foi aí que ela contou que em Formiga a empregada doméstica tinha de seguir alguns padrões. Em uma casa de um médico muuuiiiito conhecido, ela nunca pode ficar perto enquanto a família almoçava; ligar o rádio, de jeito nenhum. Na casa de um fazendeiro, também muuuiiito conhecido, a despensa era fechada a chave e sua esposa chegava a medir o pedaço de bolo que sobrou para ver se não faltava nenhuma lasca. Na residência de um empresário, a Coca-cola ou a garrafa de Tang eram retiradas assim que os donos da casa acabavam de lanchar. Ela se lembra de certa vez que a dona da casa esqueceu meia garrafa de refrigerante em cima da mesa e foi repreendida pelo marido: “Você vive dando sopa, desse jeito é difícil”.

Esse relato é triste, antigo e, infelizmente, atual.