Opinião: Fanny Alexandra

Ana Dulce Pamplona Frade (de Formiga)

Opinião: Fanny Alexandra
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




—Fanny, qual é o nome do seu filho? perguntou a Médica Obstetra agachada à frente dela por entre suas pernas, enquanto aguardava a expulsão da cabeça do bebê.

Fanny não sabia. Não havia ainda escolhido o nome. Chegara a pensar nisso algumas vezes, mas não concluiu.

Era preocupante a matemática da solidão: ela não tinha com quem dividir essa dúvida, nem com quem subtrair os problemas, nem somar as poucas alegrias e muito menos multiplicar esperanças. O companheiro, pai do bebê sem-nome, a tinha abandonado, assim que soube da gravidez. Fora criada sem pai. Sua mãe, linda e forte, havia falecido com câncer, quando ela ainda era adolescente. Seus irmãos e ela foram levados para um abrigo, e foram ficando até a maioridade, quando precisaram sair e trabalhar. Perderam contato. Não conhecia parentes maternos, muito menos paternos, pois não conhecera seu pai. E ali estava Fanny Alexandra, por enquanto sem ninguém, mas com um bebê agarrado em seu canal do parto.

Certa vez perguntou à mãe, porque lhe dera aquele nome. Ela respondeu com os olhos brilhando, suando, em função dos medicamentos para quimioterapia, que não se lembrava muito bem, mas achava que era francês e que tinha visto escrito numa caixa de pó-de-arroz. Achou chique. Pronto, era Fanny Alexandra, a chique, a sofisticada, a petite française.

Este nome é para mulheres fortes. Coloquei para lhe dar sorte. Disse ela com aquele olhar amoroso que só as mães sabem dar.

Mas não foi bem assim. Fanny desconfiava que quando nasceu, chegou aquele mesmo anjo safado, aquele chato de um querubim... aquele, da música do Chico Buarque, que “decretou que eu tava predestinado a ser todo ruim”, talvez ele tenha feito o mesmo decreto para ela. Era muito provável, pois sua vida havia sido uma sucessão de desgraças desde o seu nascimento.

E agora, aquilo. E aquilo estava se materializando: seu filho.

Repassou os eventos mais recentes. O susto, ao descobrir a gravidez; os enjoos, o abandono, todas as incertezas do mundo. Ser mãe, pensava, é coisa de gente grande, não é para pessoa fraca e imatura como eu. Neste momento, Fanny realmente não sabia se aquilo era para ela. No entanto, no início, aceitara com tanta força, apesar do abandono, da insegurança, ela pensava que seu filho seria sua salvação. Mas agora, que o momento de encarar sua cria se aproximava, já não sabia de mais nada. Só sabia que estava com dores atrozes, já faziam doze horas, estava fraca, as pernas cambaleantes, tinha a impressão nítida que suas entranhas iam explodir. E mais: dali a pouco estaria com o filho no colo, e não imaginava como ia fazer para criá-lo. Estaria disposta a guardar o choro para depois, caso não soubesse o que fazer? Estaria disposta a ficar noites e noites sem dormir? E dias sem comer, para dar de comer ao filho? Seria forte o suficiente para não adoecer? Porque a mãe solo, não pode se dar ao luxo de adoecer.

Então, ali, naquela sala de parto, sozinha, sem o pai do neném, sem sua mãe, sem nem o bendito anjo que decretara seu destino, trêmula pelo esforço de parir, pensou em desistir. Mas, desistir como? Nem isso ela podia se dar ao luxo.

Foi quando a dor apertou mais e mais, seu corpo queimava, parecia que iria desfalecer. Ela ouviu a voz da doutora segurando sua mão e lhe dizendo com carinho:

—Vamos, Fanny, enche o pulmão de ar e empurre com força, depende de você o esforço para ver a carinha de seu filho. Você não está sozinha, estamos com você, te apoiando...

Fanny acordou do seu devaneio. A médica lera seus pensamentos?

—Bento! ela gritou alto. O nome dele é Bento! e empurrou com toda a força que pôde, expulsando a cabeça do bebê.

Mais um pouco, mais um esforço e a médica liberou os ombros e o restante do corpo de Bento. Ah, que bênção! A equipe comemorava. O choro foi rápido e forte!

Fanny observava aquela criaturinha coberta de secreções e o viu ser envolvido em panos, recebendo alguns cuidados urgentes. O cordão umbilical estava pinçado.  A médica depositou-o delicadamente em seu peito, por entre seus braços. Entregou-lhe uma tesoura cirúrgica e disse-lhe:

—Fanny Alexandra, pode cortar o cordão do seu filho, agora.

Fanny entendeu a mensagem. Se houvesse um pai ali, presente, apoiando-a no parto e na vida, era ele quem cortaria o cordão. Mas não havia. Era só ela e Bento. Surpreendentemente, foi naquele momento, olhando a carinha amassada do seu menino, que o seu coração sofrido se encheu de amor por ele. Então, ela decidiu que não tinha como dar errado. Ela soube parir, ela explodiu de ternura por seu filho, ela tinha um nome de mulher forte. Tudo iria dar certo.

Então, Fanny concentrou-se na tesoura e cortou o cordão umbilical.