Opinião: Não foi morte simultânea: faleceu pouco depois do marido

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Não foi morte simultânea: faleceu pouco depois do marido
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




A família foi atingida, de uma só vez, por duas perdas. Um acidente ceifou a vida de marido e mulher. Eram um casal jovem, que, sem filhos, participava frequentemente de encontros de motoqueiros em todo o Brasil. Foi durante o deslocamento para uma das cidades promotoras de um desses encontros que ocorreu o trágico acidente. Em uma ultrapassagem, a moto derrapou na pista escorregadia e atingiu a lateral de um caminhão.

Quando a ambulância chegou ao local, às 22h, os paramédicos assistiram ao último suspiro dele. Tentaram reanimar a mulher, mas, apenas trinta minutos após o marido falecer, também ela morreu.

É esse relato que os dois irmãos – um dele, outro dela – me fazem. Em meio à dor, estão precisando cuidar do inventário. Têm dúvida sobre como ficarão os bens deixados pelo casal.

Peço que me mostrem as certidões de óbito. Verifico que está registrado nelas o horário diferente da morte, ficando claro que o marido faleceu antes da esposa.

Pergunto se o casal tinha pais vivos e se deixou testamento designando alguma pessoa para receber a herança. Eles me dizem que não.

Explico-lhes que, quando um falecido não deixa filhos, pais vivos ou testamento, são os irmãos os herdeiros. São herdeiros colaterais de 2º grau.

Porém, no caso que me relataram, não se pode deduzir logo que o irmão do falecido receberá os bens deste, e que o irmão da falecida receberá os bens desta.  É preciso levar em conta o horário do óbito.

O marido faleceu meia hora antes da esposa. Isso significa que, no momento de sua morte, deu-se a sucessão de seu patrimônio para a esposa. Mesmo que ela tenha sobrevivido apenas trinta minutos a mais que ele, herdou os bens. O patrimônio dele passou a ser dela. Portanto, apenas ela deixou herança. Assim, no caso, o irmão dela será o único a herdar.

O irmão do falecido ajeita-se na cadeira, incomodado com o que ouve. Percebo seu desconforto, quando diz: “Mas os dois morreram no mesmo acidente, quase na mesma hora. Nem chegaram a ir para o hospital.” Digo-lhe que “quase na mesma hora” não significa “na mesma hora”. A certidão de óbito mostra claramente que a esposa morreu depois do marido. No momento da morte dele, ocorreu a transmissão automática do patrimônio dele para ela. Tanto isso é fato que, se ela tivesse sobrevivido, seria a herdeira, e eles não estariam ali tratando daquele assunto comigo.

Contudo, ela faleceu em seguida, sem que houvesse herdeiros necessários (o marido já falecera, não tinha filhos nem ascendentes vivos). Nesse caso, na linha de sucessão, entra o herdeiro colateral de 2º grau, que é o irmão dela.

“E se os dois tivessem falecido na mesma hora? Mudaria alguma coisa?” Respondo que, se isso tivesse ocorrido, seria o caso de morte simultânea. Aí teríamos um fenômeno que, em Direito, é chamado de comoriência. Não haveria tempo para que um herdasse do outro, pois morto não herda. Então, o patrimônio do casal seria partilhado entre os herdeiros, que, no caso relatado por eles, são os dois.

Comento com eles que a comoriência é um tema polêmico no Direito, pois alguns creditam a esse fenômeno a maior injustiça que se comete no Direito das Sucessões.

Para que entendam essa alegação de injustiça, peço que imaginem a seguinte situação: um pai, chamado Jader, viúvo, tem dois filhos: Jonas e Jair. Jair é casado e tem dois filhos – Jaime e Januário.  Devido a um acidente na pedreira em que trabalham, Jader e Jair (pai e filho) morrem no mesmo dia e horário. Nesse caso, Jair não herdará o patrimônio de Jader, porque, como já dito, morto não herda. Quem herdará todo o patrimônio será Jonas.

“Os filhos de Jair não herdarão? São netos de Jader. Netos não herdam do avô no lugar do pai falecido?” – perguntam.

A questão é que ocorreu o fenômeno da comoriência. Jader e Jair faleceram no mesmo horário. Jair não chegou a herdar; então, o patrimônio de seu pai Jader irá todo para o único filho vivo, Jonas, que é herdeiro necessário. Jaime e Januário serão excluídos da sucessão, isto é, nada herdarão do patrimônio deixado pelo avô.

Já atenta à injustiça que esse entendimento gera, a VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal posicionou-se no sentido de que seja reconhecido o direito dos descendentes e dos filhos de irmãos quando houver comoriência entre pais e filhos (Enunciado n. 610). Se aplicado ao caso que citei como exemplo, Jaime e Januário, segundo esse entendimento, terão direito de receber, em lugar do seu pai Jair, a metade da herança deixada pelo avô Jader. 

“Justo, muito justo.” – meus dois ouvintes falam ao mesmo tempo.

Quando se vão, saem a conversar sobre a diferença que minutos podem fazer. Sim, minutos fazem muita diferença não apenas na vida, mas também no momento da morte.