Opinião: Nunca cuidou da filha, mas quer a herança que ela deixou
Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)
Foi minha colega na faculdade, quando eu cursava Letras. A mãe era empregada doméstica e, nos finais de semana, ainda trabalhava como cuidadora de idosos para pagar os estudos dela e sustentar as duas e a uma outra filha, acometida de uma doença hereditária rara que impedia o desenvolvimento normal do cérebro. O pai, assim que soubera da doença, abandonara o lar e se mudara para outra cidade, constituindo lá outra família. Homologado o divórcio, a mãe ficara, na partilha, com a casa onde moravam e com um lote.
À medida que as limitações da filha doente aumentavam, foi ficando cada vez mais evidente que a casa teria de passar por reforma para favorecer o deslocamento dela. Para custear o serviço, o lote foi vendido.
O pai voltara à cidade apenas uma vez para ver as filhas. Sempre ausente, não contribuía para o sustento delas. Sem alternativa, a mãe teve de ajuizar uma ação contra ele para que honrasse a obrigação de pagar a pensão alimentícia determinada quando se divorciaram. Por um ano, ele cumpriu a obrigação. Porém, depois disso, simplesmente deixou de pagar. A mãe se viu em sérias dificuldades, principalmente porque ele se mudou e nem endereço deixou. Não era encontrado para receber intimação.
Para ajudar a mãe, essa minha colega passou a dar aulas particulares, o que foi bom, pois, antes mesmo de os professores ensinarem determinados conteúdos gramaticais, ela já os tinha estudado para não fazer feio diante dos alunos que lhe eram encaminhados. Isso a tornou uma aluna brilhante.
Depois da formatura, ela e eu perdemos contato. Agora, tenho-a diante de mim, contando a história de sua família. Sua mãe faleceu há cinco anos. Nesse período, assumiu os cuidados com a irmã, que, infelizmente, também faleceu há quinze dias. O pai, que não era visto por elas há anos, compareceu ao velório. Ela soube que ele permanecerá na cidade até que seja finalizado o inventário, pois é o herdeiro da filha.
Ela não se conforma com tamanha frieza e descaramento. Diz que não é possível que não se possa fazer nada para impedi-lo de herdar a herança deixada pela irmã, que consiste, basicamente, em metade da casa na qual elas e a mãe sempre viveram. Não consegue dormir direito, remoendo a ideia de que será uma injustiça permitir que um pai que nunca cuidou da filha doente, que sempre foi ausente e omisso possa beneficiar-se da morte dela.
Explico a ela que, de fato, é o pai o único herdeiro da irmã dela. Havendo ascendente vivo, se a pessoa falecida não deixou filhos, são os pais os herdeiros. Os irmãos não herdam em uma situação assim.
Explico a ela as possibilidades que a lei oferece para que essa norma não seja aplicada. Uma delas é propor uma ação de exclusão de herdeiro por indignidade. O que se buscará nessa ação é que o herdeiro seja declarado indigno, o que o impedirá de receber a herança. Será por força da lei, em uma sentença judicial, que será declarada a indignidade.
De acordo com o Código Civil, são três as situações de indignidade: se for autor, coautor ou participar de crime, ou tentá-lo, contra o autor da herança, o cônjuge, companheiro, ascendentes ou descendentes deste; se o tiver caluniado na Justiça ou cometer crime contra sua honra, a de seu cônjuge ou companheiro; se, usando de violência ou meios fraudulentos, tiver inibido ou criado obstáculo para que o autor da herança dispusesse livremente de seus bens por ato de última vontade.
Ela logo percebe que o caso do pai dela não se enquadra em nenhuma dessas três hipóteses.
Continuo minha explicação. Outra possibilidade é a deserdação. Esta se dá por meio de testamento, o que a irmã dela não poderia fazer devido ao fato de ser incapaz, condição resultante da grave deficiência intelectual causada pela doença. Porém, há decisões nos Tribunais, em casos semelhantes ao da irmã dela, incapaz, desamparada e abandonada em vida pelo pai (que seria naturalmente seu herdeiro, visto que ela não teve filhos), as quais são favoráveis à deserdação, mesmo sem testamento. É que, nessa situação, não há como exigir que tenha havido testamento a deserdar, se a filha era doente e absolutamente incapaz.
Digo-lhe que precisa conseguir provas a serem apresentadas ao Juízo, demonstrando que o pai se manteve ausente e desamparou a filha gravemente enferma. Também precisará comprovar que a irmã era pessoa absolutamente incapaz devido à deficiência intelectual, estando, assim, impedida de fazer um testamento para deserdar o pai, ou de propor uma ação judicial para declarar a indignidade dele. Conseguindo essas provas, há, com fundamento em outros julgamentos, probabilidade de a deserdação ocorrer.
É esse o caminho que combinamos percorrer.