Opinião: Quer excluir da herança os irmãos por terem ofendido a honra do pai

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Quer excluir da herança os irmãos por terem ofendido a honra do pai
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Ela me estende o celular para que eu leia algumas mensagens. Antes de as ler, digo-lhe que as compreenderei melhor se souber quem são os interlocutores – quem as enviou e quem as recebeu – e em que contexto (situação) foram produzidas. Então, ela inicia nossa conversa da forma como deveria.

Conta que o pai faleceu há dez dias. Foram 86 anos de uma vida de muito trabalho, em um esforço diário para prover os filhos do necessário para que construíssem o próprio caminho. Apesar de ser um homem sem nenhuma formação acadêmica, revelava um talento especial para negócios. Era um empreendedor nato, o que lhe possibilitou adquirir fazenda, lotear terrenos e construir um patrimônio de alto valor. Os frutos do seu trabalho propiciaram aos filhos uma vida confortável e privilégios, como estudar em escolas particulares e viajar.

Enquanto não se tornou um idoso, foi quem ditou os destinos da família. Consciente de que todos os bens que tinha eram resultado de muito suor seu, era quem decidia o que fazer com eles. Essas decisões nem sempre agradavam os dois irmãos dela, o que levava a discussões intensas em casa. Era angustiante para ela assistir aos embates entre eles. Revoltava-se com os irmãos devido à forma desrespeitosa como tratavam o pai. Quanto mais ele envelhecia, mais o desrespeito aumentava. Acredita que o desgosto tenha levado o pai mais rápido. As mensagens que ela me mostra foram produzidas pelos dois irmãos e enviadas a ele pouco antes do seu falecimento.

Agora, sim, peço que as mostre a mim, mas antes lhe pergunto como teve acesso a elas. Diz que o pai as encaminhou a ela. Ele expressou sua tristeza e lhe disse que não merecia palavras tão pesadas proferidas pelos filhos. Ela foi visitá-lo e procurou consolá-lo, dizendo que aquilo iria passar, que os irmãos cairiam em si e pediriam perdão pelo que tinham escrito. Saiu da casa do pai e chamou os irmãos para uma conversa. Nada do que ela disse os sensibilizou. Ao contrário, proferiram palavras mais pesadas ainda contra o pai, não se importando se a vizinhança toda os ouvia. Saiu arrasada da conversa. Não teve coragem de relatar ao pai o ocorrido.

Leio as mensagens. O conteúdo delas é mesmo pesado, em se tratando de filhos se dirigindo a um pai. Os irmãos dela souberam ser cruéis. Consigo perceber em suas palavras um interesse exclusivamente financeiro. Em nome disso, as ofensas à honra do pai saltam em letras garrafais nas mensagens. Pergunto a ela se eles, durante o velório do pai, demonstraram algum arrependimento. “Nada” – ela diz.  É lastimável que vínculos de afeto sejam substituídos por interesses financeiros. O pai dela deve ter partido amargurado. Não é assim que a vida de um pai deveria terminar.

Ela me confessa que acha injusto os irmãos dela se beneficiarem da herança deixada pelo pai. Eles não a merecem. Agiram de forma indigna com o pai. Quer saber se pode impedi-los legalmente de receber a herança. Ela diz que usaria como argumento essa indignidade, já que eles ofenderam a honra do pai, como comprovam as mensagens que me mostrou.

Percebo, por sua fala, que ela leu ou foi instruída sobre o artigo do Código Civil que diz serem excluídos da sucessão, isto é, perdem o direito à herança, os herdeiros “que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro”. Explico-lhe que esta é uma questão polêmica no Direito:  para ser excluído da herança, o herdeiro que foi indigno teria de já ter sido condenado criminalmente por essa indignidade?

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), alinhado com a doutrina majoritária, tem decidido que é preciso haver uma condenação criminal anterior. Isso significa que o pai dela deveria ter denunciado a calúnia feita pelos filhos, e que estes teriam de ter sido julgados culpados desse crime. A partir dessa condenação de crime contra o autor da herança é que se comprova a indignidade, condição necessária para excluir os filhos. Esse posicionamento leva em conta o fato de que, às vezes, nas desavenças familiares, filhos proferem palavras ofensivas contra os pais, e estas são esquecidas ou desculpadas. Por isso, para se comprovar a indignidade, a ofensa tem de ter sido grave a ponto de levar o autor da herança a ajuizar uma ação criminal contra o filho, e este ser condenado por tal crime. Como o pai dela não fez isso, não existe prévia condenação penal contra os irmãos.

Ela compreende o que lhe explico. Não demonstra inconformismo. Não se rebela quanto às decisões judiciais. Talvez esteja refletindo sobre o fato de que geralmente um pai não denuncia um filho e que, por isso, este siga impune... Talvez esteja constatando que, no seu caso, não caberá à Justiça, mas à própria vida dar lições aos irmãos dela. Ela se despede, dizendo crer na frase bíblica "Honra teu pai e tua mãe, a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá.” Eu fico a desejar que o amor e o respeito que ela dedicou ao pai sejam sua bênção.

 

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

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