Opinião: ‘Um, dois, feijão com arroz... três, quatro, feijão no prato’

Lúcia Helena Fiúza (de Belo Horizonte)

Opinião: ‘Um, dois, feijão com arroz... três, quatro, feijão no prato’




Formiga sempre foi boa de festas. Dificilmente se imagina uma cidade que goste tanto de função (funções eram como se chamavam as comemorações e as confraternizações).

Eu tinha apenas seis anos quando meu pai me levou para os festejos do centenário da cidade na Praça Getúlio Vargas, eu era bem pequena e fiquei nos ombros dele. Por causa da deficiência em uma de suas pernas, eu quase despencava durante a caminhada.

Recordo de como havia movimentações na Festa do Formiguense Ausente e na Festa dos Viajantes. Em época de exposições agropecuárias, principalmente quando vinha o Chacrinha com suas chacretes, os carros ficavam estacionados por todo o Bairro Alvorada, na época, não havia acesso pelo Terminal Rodoviário. Não existia nem o Terminal Rodoviário.

E o Carnaval? Tinha uma festa de guerra de farinha de trigo na Praça Getúlio Vargas que o chão ficava escorregadio. As escolas de samba eram de encher os olhos e cheirar lança perfume agachada debaixo de mesas nos bailes do Clube Centenário era de uma adrenalina única. Quem não era sócio da agremiação tinha a opção do Centro Operário, que ficava em frente à Prefeitura, e do Poliesportivo da Praça de Esportes.

Em toda minha vivência, há lembranças profundas de funções que me dão saudades e refrescam a memória trazendo de volta uma atmosfera de linda e refrescante nostalgia.

Porém, passados tempos e tempos, a razão vai colocando em ordem os acontecimentos e coisas que se imaginavam boas e lindas pela ingenuidade imperante vão se colocando nas devidas prateleiras.

Na Festa dos Viajantes, por exemplo, não tinha nada de inocente. Lembro-me de uma no Campo do Formiga em que senhores completamente embriagados passavam indelicadamente as mãos nas mocinhas da cidade, que, não identificando a malícia, sorriam sem notar que estavam sendo molestadas.

A guerra de farinha na Praça Getúlio Vargas era de uma agressividade asquerosa e careta. Os jovens que comandavam se diziam modernos empunhando uma bandeira com a logomarca dos Rolling Stones (muita falta de noção e de cultura um símbolo de uma banda de rock britânica em uma festa carnavalesca brasileira, quanta bobagem). Uma vez, meu pai ia passando distraidamente com o vidro de seu fusquinha 1968 aberto e jogaram um saco do pó de trigo que estourou no banco do passageiro. Ficamos muito tristes, tivemos de fazer economias para que a família pudesse ter seu primeiro carro.

No Clube Centenário, havia muitas brigas. Dois irmãos que atendiam pelo sufixo “inho” promoviam quebradeira toda vez que havia um esbarrão. Um nojo que fazia a gente ir embora mais cedo.

De todas as decepções que tive depois de tomar consciência das coisas, a que mais me revoltou foi com relação aos desfiles de “6 de junho” e de “7 de setembro”. Colocavam um cordão de isolamento que ia da Praça Ferreira Pires até a Prefeitura, na Rua Barão de Piumhi.

Bem cedo, havia o desfile do Tiro de Guerra e, na sequência, da Banda de Música do Batalhão da Polícia Militar de Bom Despacho. Depois vinham o Antônio Vieira, o GOT, o Polivalente, o Santa Terezinha, o Aplicação e até a meninada do Pio XII e do Rodolfo Almeida. Por fim, a Escola Normal para fechar a parada e lembrar que o almoço estava na mesa.

Confesso que a lembrança me revolta. Que o Tiro de Guerra e a Banda de Bom Despacho passem marchando é lógico e emocionante, mas obrigar estudante a acertar o passo é revoltante e repugnante.

Para quem não se atenta, é bom deixar claro que a escola ter sua fanfarra para participar de datas comemorativas é bonito além de ser uma boa estratégia de marketing, mas o desfile deve parar por aí. Aqueles pelotões de adolescentes que vêm na sequência com “Um, dois feijão com arroz, três quatro, feijão no prato” é patético.

A história de submeter estudante à marcha ganhou força depois do golpe militar de 31 de março de 1964. Umas das resistências à violência e à ruptura institucional foram a UNE (União Nacional dos Estudantes) e a Unes (União dos Estudantes Secundaristas). E não há nada melhor e mais eficiente para pisar e humilhar um estudante do que obrigá-lo a marchar mantendo distância e fazendo os braços balançarem em sentido contrário ao passo.

Não me recordo das datas corretas, mas na memória tem um senhor chamado Amaro, que, entre um cigarro, e outro reclamava do passe errado dos alunos da Escola Normal. No Antônio Vieira, era o Tenente Oscar quem dava a ordem unida. No GOT, tinha um subtenente (o patrono era o Coronel Gilberto Freitas) e o Sargento Cardoso no Aplicação. No Santa Terezinha, o Sargento Paulo.

Lindo seria se cada escola tivesse a sua fanfarra, mas só a fanfarra. Além de um erro histórico, é uma vergonha e um aviltamento obrigar o aluno a marchar em pelotões sem que ele seja um militar.