Opinião: Ele tinha duas famílias, e uma era com ela

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Ele tinha duas famílias, e uma era com ela
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Ele faleceu. No velório, as duas famílias constituídas por ele estavam presentes, desafiando conceitos e preconceitos, como a dizer a todos que, mais importante que qualquer convenção, era o adeus que queriam dar àquele que nunca lhes faltara. Não houve constrangimento entre os familiares, porque não era segredo para ninguém que conviviam harmonicamente há pelo menos vinte anos. A esposa e ela, que me procura e era companheira do falecido, sabiam da existência uma da outra e dos filhos que ambas tiveram com ele, tanto que os meios-irmãos conviviam bem uns com os outros.
Agora, com a morte dele, uma questão muito séria se apresentou. Tendo sido companheira dele por mais de vinte anos e tendo trabalhado na empresa dele pelo mesmo período, via-se prestes a ficar desamparada. Ela me diz ter consciência de que o fato de ele ser casado impede que o vínculo entre os dois seja reconhecido. Ou seja, ela diz que sabe que a lei não permite que a mesma pessoa seja casada e, simultaneamente, estabeleça união estável com outra, não reconhecendo, assim, direitos previdenciários, ao mesmo tempo, para a esposa e a companheira, exceto, por exemplo, se uma não tinha conhecimento da existência da outra.
Porém, ela tem refletido muito sobre as particularidades da sua história com ele e tem achado que é injusto não reivindicar sua participação pelo menos na empresa dele. Pergunto-lhe por que pensa assim.
Ela me conta que estabeleceram união estável em 1972, mas que, em 1976, ele se casou, o que não impediu que mantivessem seu relacionamento. Conta que, em mais de vinte anos juntos, ajudou o companheiro a construir seu patrimônio. Trabalhou na empresa dele durante esse tempo e era tida como proprietária pelos funcionários. Tomava todas as providências quanto à contratação, treinamento e monitoramento deles, tendo autonomia para tomar decisões quanto à demissão de algum que não se adequasse à política da empresa. Houve um esforço direto por parte dela para a consolidação da empresa, por isso seu sentimento é que deve reivindicar isso.
Quanto aos filhos dela, sabe que não é necessário reivindicar seus direitos, pois têm os mesmos dos meios-irmãos que são fruto do casamento.
Digo-lhe que, no caso da empresa, sua participação pode levar a um entendimento de que houve uma sociedade de fato entre os dois. Há uma súmula do Supremo Tribunal Federal, publicada há mais de 50 anos, que diz que, quando se comprova a existência de uma sociedade de fato entre os concubinos (ainda se usava essa palavra, carregada de significado pejorativo; hoje, prefere-se o termo conviventes), é cabível a sua dissolução, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
Se ficar comprovado que ela trabalhou por mais de vinte anos em uma das empresas dele, sendo identificada pelos funcionários como proprietária do empreendimento, há possibilidade de alcançar na Justiça a partilha desse patrimônio, fruto da sociedade de fato que se estabeleceu entre eles.
Quanto a direitos previdenciários (por exemplo, divisão com a esposa dele da pensão por morte) e partilha dos demais bens, o Supremo Tribunal Federal se posicionou no sentido de que a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em razão da consagração do dever de fidelidade e da monogamia determinada pela lei brasileira.
Embora o relacionamento dela com o companheiro fosse estável, público e duradouro, embora ela e a esposa dele tenham criado seus filhos convivendo harmoniosamente entre si, embora não se tratasse de um relacionamento casual, clandestino e descompromissado, ainda é entendimento predominante o não reconhecimento de famílias simultâneas.
Esse é um tema que tem sido amplamente discutido. O ideal é a interpretação das leis levando em consideração os fatos concretos, para que se aplique a todos o direito a uma vida digna. Muitos afirmam, acertadamente, que as pessoas não deixam de existir porque fazem parte de uniões simultâneas. O fato de tais uniões serem abominadas pela opinião pública não pode tornar invisíveis ao Direito aqueles que fazem parte delas.
Bem, essas são considerações que faço a ela, assunto para longa conversa que só pode ocorrer em outro momento, porque o que precisaremos fazer, agora, é encontrar meios de comprovar a sociedade de fato que se estabeleceu, na empresa, entre ela e o companheiro.


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