A companheira do pai quer anular a partilha extrajudicial

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

A companheira do pai quer anular a partilha extrajudicial
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Minha amiga, que mora em outra cidade e não vejo há cerca de dois anos, vem fazer-me uma visita. Entre outras conversas que colocamos em dia, ela me conta que perdeu o pai, um homem forte e sadio no alto dos seus quase setenta anos. Por isso, quando faleceu repentinamente devido a um infarto, tanto ela, filha, quanto a companheira dele mergulharam, por dias, em profunda tristeza.

As providências necessárias após o falecimento a fizeram assumir, com a concordância da companheira do pai, a frente da realização do inventário. Como as duas eram maiores e capazes e estavam em concordância com a destinação dos bens deixados pelo falecido, optaram por realizar o inventário extrajudicialmente, isto é, no Cartório de Notas. Como a presença de um advogado era condição para que o inventário extrajudicial ocorresse, minha amiga chamou o tio para acompanhá-las no procedimento.

Ao conversar com a madrasta, não precisou lembrar-lhe que o pai sempre dissera que a ela, filha, seria destinada a casa em que ele morava. A madrasta disse que respeitaria a decisão dele e que renunciaria à casa, assim como a qualquer bem que ele tivesse deixado. Assim foi feita a minuta, que foi lida pela tabeliã substituta, no cartório, e assim se deu a partilha.

Tudo parecia resolvido, mas, há poucos dias, foi surpreendida por uma ação de anulação de partilha extrajudicial. A madrasta alega que não foi orientada a respeito de seus direitos e que, se soubesse deles, não teria assinado o documento da partilha. Acreditou que a enteada e o tio desta fossem seus amigos e que resguardariam seus direitos. Diz que foi ingênua e que se aproveitaram da sua ignorância e inexperiência. Afirma também que não expressou desejo de renunciar a nada.

Minha amiga está abalada com a mudança de atitude e de discurso da madrasta. Tudo foi feito às claras; não entende por que ela alega ter sido enganada.

Pergunto-lhe se a madrasta tem alguma profissão e capacidade de leitura para compreender o que está escrito em um documento. Pergunto também se lhe foi dada a oportunidade de ler os documentos do inventário e da partilha. Ela me diz que a madrasta é professora. Leciona Geografia em uma escola particular. Teve oportunidade de ler a minuta e de ouvi-la no cartório.

Comento que, diante desse fato, será difícil a mulher convencer o Juízo de que foi ludibriada, de que renunciou a seu direito por ignorância e ingenuidade. Por mais que a linguagem jurídica seja difícil para os leigos, saber que se está renunciando a um bem geralmente fica claro em documentos redigidos em Cartórios de Notas. Além do mais, ela estava livre para perguntar sobre trechos que lhe parecessem confusos.

Um inventário extrajudicial é um negócio jurídico. Esse negócio pode ser considerado nulo, sim, desde que se enquadre em uma destas situações: se for celebrado por pessoa absolutamente incapaz; se seu objeto for ilícito, impossível ou indeterminável; se não se realizar na forma prescrita em lei; se não se seguir alguma solenidade que a lei considere essencial para sua validade; se for feito para fraudar alguma lei; se for proibido em lei.

Considerando o que ela me relatou e partindo do princípio de que o inventário e a partilha foram feitos corretamente, de que o Cartório de Notas agiu da forma prescrita em lei e obedeceu ao estabelecido, só restará à madrasta apresentar provas de que houve vício na realização do negócio. Para anulá-lo, terá de provar que foi enganada, caindo em erro por culpa de um dos envolvidos, ou que foi coagida a dar sua concordância e a ir ao cartório.

Pelo que me parece, a madrasta simplesmente se arrependeu de ter renunciado a seus direitos como herdeira do falecido. Deu-se conta de que não deveria ter aberto mão de tudo.

Quando minha amiga se vai, fico pensando que não é frequente, mas acontece que, tomadas pelo sofrimento da perda do ente querido e pelo relativismo que a morte impõe ao acúmulo de bens materiais, algumas pessoas abrem mão de seus direitos à herança. Ficam constrangidas em receber bens do falecido ou em expressar-se contrariamente ao que outros herdeiros propõem.

Sem dúvida, o pós-morte é difícil. É tempo de fragilidade. Há de se ter calma para pensar com clareza, para não confundir dor e amor com direito. Ter consciência do próprio direito e requerer que ele seja observado não é um atestado de que a relação se deu apenas por interesse. A madrasta de minha amiga tomou duas decisões que a prejudicaram: renunciou, sem pensar, a seu direito, e, depois, procurou recuperá-lo com alegações infundadas. Lamentável.

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

maluoliveiraadv201322@gmail.com

Membro da Academia Formiguense de Letras (AFL)