Opinião: Os irmãos querem que o carro que ela ganhou do pai entre no inventário

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Os irmãos querem que o carro que ela ganhou do pai entre no inventário
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Ela me relata que o pai faleceu há dois meses. O inventário foi iniciado. Para sua surpresa, os dois irmãos dela inseriram, na lista de bens do patrimônio a ser partilhado, o carro que ela ganhou do pai quando foi aprovada no vestibular de Engenharia Química. Ela os questionou a respeito disso, obtendo, como resposta, que o carro foi um adiantamento da herança dela.

Ficou chocada com essa resposta, pois eles sabiam e sabem muito bem que não foi com essa intenção que o pai lhe deu o carro. Ele não quis adiantar-lhe herança nenhuma, mas, sim, demonstrar seu reconhecimento ao esforço dela, pois conseguiu ser aprovada em uma universidade federal, além de ser a única da casa a decidir cursar ensino superior. Era sonho do pai ver os filhos na faculdade, mas os dois irmãos dela nunca demonstraram interesse por estudo.

Conversou com os irmãos sobre isso, mas eles se mostraram irredutíveis. Disseram que seriam prejudicados, já que, com o carro, ela receberia um quinhão maior do que o deles na herança. Ficou muito decepcionada ao se dar conta de que eles estavam interessados exclusivamente em dinheiro. Não davam nenhum valor ao real propósito do pai ao presenteá-la com um carro. Percebeu que, na verdade, tinham ficado muito incomodados com o que ele tinha feito.

Comento com ela que, muitas vezes, situações extremas, como é o caso de óbito em família, servem para que as pessoas envolvidas conheçam quem é quem e identifiquem sentimentos não expressos antes. Talvez não seja o caso de dizer que máscaras caem. Isso soa pejorativo. O que acontece é, simplesmente, que o outro não consegue mais manter oculta uma faceta sua. Ele se dá a conhecer, e isso é bom para quem, antes, tinha outra ideia a respeito dele. É positivo saber com quem se está lidando.

Quanto ao caso que ela me apresenta, se o pai a presenteou com o carro, sem ter formalizado isso como doação com cláusula de dispensa de colação, os irmãos podem, sim, trazer o veículo ao inventário, isto é, incluí-lo entre os bens a serem partilhados. Essa cláusula de dispensa de colação seria a garantia dela de o carro, adquirido com os recursos financeiros do pai, não entrar no monte partilhável.

Ela me pergunta o que é colação. Explico-lhe que é o ato de trazer à totalidade da herança deixada pelo falecido aqueles bens que ele transferiu gratuitamente em vida. Traz-se ao monte partilhável o bem doado ou, se este já não existir, seu valor correspondente. O herdeiro necessário (que, no caso, são ela e os irmãos apenas, já que a mãe deles e os avós, pais do pai, são falecidos) que recebe doação em vida precisa trazê-la à colação quando morre o doador. Se não o fizer, correrá o risco de ser reconhecido como sonegador.

Se o doador não formalizar a doação e não inserir no documento a cláusula de dispensa de colação, ou se não tiver deixado claro, em testamento, que essa doação está dispensada de colação, tendo sido retirada da sua parte disponível, aquele que a recebeu terá de informá-la no inventário, pois será tratada como antecipação de herança.

Ela me pergunta o que é parte disponível. Explico-lhe que é a metade do patrimônio de uma pessoa que tem herdeiros necessários. 50% dos bens do pai pertenciam exclusivamente a ele – eram sua parte disponível –, podendo dispor deles como quisesse. Assim, se a doação não ultrapassa esses 50% (não “invade” os 50% que cabem aos herdeiros necessários) e é feita com cláusula de dispensa de colação, não precisa ser trazida ao inventário.

A obrigatoriedade de colação visa à proteção de todos os herdeiros. O que se busca é a igualdade na partilha. Se um herdeiro é mais beneficiado do que outros enquanto o dono da herança está vivo, os valores e bens com os quais o filho foi agraciado devem ser trazidos à colação. Comporão o monte a ser partilhado, que será dividido igualmente entre todos os herdeiros.  O carro dela será avaliado, e o valor correspondente a ele fará parte do patrimônio, que, então, será partilhado.

“E se eu não concordar com isso? E se eu me defender, dizendo que meu pai quis apenas me presentear?” – ela insiste. Digo-lhe que, infelizmente, seu argumento não prevalecerá, pois objetivamente não há dispensa da colação, nem em um contrato de doação com essa cláusula, nem em testamento deixado pelo pai informando que o bem dado como presente foi retirado dos seus 50% disponíveis. Os irmãos poderão, inclusive, fazer um pedido judicial de tutela de urgência para bloqueio do veículo, de modo que ela fique impedida de vendê-lo.

Ela se vai consciente de que, infelizmente, o pai não tomou todas as precauções legais ao lhe dar o carro, por isso ela precisará devolver ao monte partilhável esse bem que recebeu antecipadamente e do qual vem usufruindo. Sem saber, ele lhe causou prejuízo. Certamente, nunca passou pela cabeça dele que os outros filhos reivindicariam sua parte no veículo. Com a situação, ela aprendeu: no universo imprevisível das relações humanas, toda precaução é necessária quando o assunto envolve transferências, doações feitas em vida e herança.

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

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