Opinião: O testamento do pai não a contemplou

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: O testamento do pai não a contemplou
Maria Lucia de Oliveira Andrade Membro da Academia Formiguense de Letras (AFL)




Encontro-a casualmente em uma das raras vezes de ida ao centro da cidade no sábado pela manhã. Faz muitos anos que não a vejo. Foi embora quando ainda era adolescente. A mãe se mudou para uma cidadezinha do interior da Região Norte do Brasil e a levou junto. 

Pergunto se voltou definitivamente. Ela me diz que não. Viera por causa do falecimento do pai. Conta que obtivera dele, ao longo da vida, apenas o sobrenome e o reconhecimento do estado de filha no registro de nascimento. Nunca fez questão alguma de estar com ela. Tentara aproximar-se dele quando atingiu a adolescência. Ingênua, iludira-se pensando que ele não se aproximava dela devido a algum problema com a mãe dela.  Nada disso. O homem realmente não queria qualquer aproximação.

Quando soube que ele havia adoecido, chegou a lhe telefonar, mas fora bem seco com ela, encerrando logo a ligação. 

Ao saber do falecimento dele, veio à cidade, pois sabia que estaria envolvida nos desdobramentos legais relativos ao patrimônio deixado por ele. Descobriu que, no atestado de óbito que fora providenciado pelo filho da viúva do pai, constava que este não havia deixado nenhum descendente. Descobriu mais: o pai nunca comentara com a companheira nem com o enteado que tinha uma filha, e deixara um testamento no qual declarou sua vontade de que a companheira recebesse toda a sua futura herança. 

Isso a deixou arrasada, pois constatou que fora ninguém na vida do pai. Caiu em tristeza não por não ter sido contemplada no testamento, mas, sim, por ele nunca ter revelado a existência dela.

Diz que está, agora, às voltas com os trâmites legais para resolver a situação, pois tem consciência de que a metade do patrimônio deixado pelo pai pertence a ela, pois, como filha, é herdeira necessária. A madrasta tem alegado que, se pai e filha conversaram ao telefone quando ele adoeceu e, mesmo assim, ele não mudou o testamento, é porque não queria que ela recebesse nenhuma herança dele. Alega também que todos os requisitos para fazer o testamento público foram seguidos, de modo que não há motivo para invalidá-lo.

Comento com ela que esses argumentos não impedirão que ela, como filha, receba o quinhão que lhe cabe na herança. Existe prova de que o pai sabia da existência dela – ele próprio providenciou o registro de nascimento. Se ele não soubesse da existência dela, quando fez o testamento, aí, sim, o testamento poderia ser rompido, fazendo cair por terra as suas disposições. 

No caso, não é o que ocorre. Porém, o Juízo procurará preservar a vontade do falecido, pois a medida de invalidar totalmente as disposições de um testamento que obedeceu a todos os requisitos legais ao ser feito só ocorre em último caso, ou seja, se não se tinha conhecimento da existência de um herdeiro. 

“Então, eu não terei direito à herança?” – ela me pergunta. Explico-lhe que receberá 50% dos bens, os quais correspondem à legítima, isto é, à herança que necessariamente cabe a ela como filha. O falecido só poderia ter disposto, em testamento, dos 50% disponíveis, ou seja, da metade que não seria legalmente destinada a ela, filha, herdeira necessária. 

Ficando comprovado que não houve nenhuma irregularidade (por exemplo, falta de lucidez do testador, ausência de testemunhas, conteúdo impróprio) na feitura do testamento e que esta seguiu todas as formalidades, a madrasta vai mesmo receber metade do patrimônio deixado pelo falecido, pois ele tinha o direito de dispor de 50% dos seus bens da forma como quisesse e para quem quisesse.

Haverá uma redução das disposições do testamento no que se refere ao patrimônio disponível, a fim de respeitar a legítima, visto que o testador só tinha autorização para testar metade dos seus bens. Será durante a ação de inventário que se resolverá a questão.

Continuamos ainda a conversar sobre o caso, mas o foco passa a ser o sentimento dela ante o descaso e a indiferença do pai. Diz que, mesmo que herdasse todo o dinheiro do mundo, isso não extinguiria a marca dolorosa deixada pela injustificável ausência. Não terá registrada na memória nenhuma lembrança afetiva dele. O abandono é o que lhe virá à mente a cada celebração do Dia dos Pais. Tentará conviver com isso, pois é só o que tem a fazer. 

Digo-lhe que há algo mais a fazer: perdoar.  Somente o perdão poderá libertá-la do peso emocional dessa experiência dolorosa de abandono.