Opinião: Recebeu um bem em testamento, mas foi proibido de vendê-lo

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Recebeu um bem em testamento, mas foi proibido de vendê-lo
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




“De que me adianta receber um bem em testamento, mas me impedirem de vendê-lo? Que utilidade isso tem para mim? Será que meus pais não pensaram que eu poderia necessitar me desfazer do imóvel que me deixaram? Com a mão direita me deram; com a outra, tiraram.”

Ele está inconformado, ainda que tenha recebido sua parte na herança e mais. Os pais quiseram contemplá-lo com algo mais, deixando-lhe, em testamento, um apartamento de quarto e sala no centro da cidade. Para ele, era compreensível essa diferenciação, pois havia sido um filho sempre presente na vida deles, diferentemente dos dois irmãos mais novos, que apareciam apenas no Natal para uma visita.  Estes não gostaram muito de saber desse legado em testamento, mas nada puderam fazer contra isso, pois os pais haviam efetuado tudo de acordo com a lei, dentro dos 50% disponíveis no patrimônio conquistado ao longo da vida.

À primeira vista, parece-me desmedido seu inconformismo; afinal, recebeu um bem em testamento, além do quinhão da herança ao qual tinha direito legalmente. Isso deveria ser suficiente para deixá-lo satisfeito e profundamente grato aos pais.

Porém, à medida que desabafa, vou compreendendo suas razões.

A filha caçula foi diagnosticada com uma doença que está demandando recursos de que ele não dispõe, por isso está passando por dificuldades financeiras. O único bem que tem disponível para venda é o imóvel que recebeu em testamento. Contudo, o fato de os pais terem imposto uma cláusula de inalienabilidade ao bem (o que significa que não pode ser vendido por ele, que o recebeu) deixa-o de mãos atadas.

Pergunto-lhe em que ano foi feito o testamento. Ele me diz que foi em 2001. Explico-lhe que, à época, estava em vigor o Código Civil de 1916, que, de fato, estabelecia não poder ser invalidada essa cláusula em caso algum, exceto se fosse por necessidade ou utilidade pública, ou para execução por dívidas de impostos relativos ao imóvel. Acrescento que, geralmente, o testador (no caso, os pais dele) impõe essa cláusula como forma de proteger o patrimônio mesmo após seu falecimento; por exemplo, quando o herdeiro lida com os bens de forma inconsequente.

Ele se exalta. “Meus pais sabiam que não sou esse tipo de pessoa. Devem ter sido orientados de forma errada quando foram fazer o testamento. Eu manteria para sempre como meu esse apartamento que eles me deixaram, mas a situação atual me obriga a vendê-lo. Não posso vender minha casa e me mudar para ele. Minha esposa e meus filhos nem cabem lá.”

Percebo o desconforto dele com minha informação sobre o que motiva alguém a colocar em testamento a restrição de inalienabilidade do bem legado. Reforço que não se trata de julgar que seja uma pessoa inconsequente, mas apenas de colocá-lo a par das motivações de uma restrição assim. Pode ser colocada com determinado prazo: por exemplo, o imóvel só será vendido se quem o recebeu em testamento finalizar o curso universitário. Ela serve para proteção, mesma justificativa para tornar impenhorável e incomunicável determinado bem.

Digo a ele que pode requerer, por meio de uma ação judicial, a dispensa da cláusula de inalienabilidade. O Superior Tribunal de Justiça adotou uma orientação quanto a essa cláusula, dizendo que ela pode ser desconstituída se ficar comprovado que tal desconstituição propiciará melhor aproveitamento do patrimônio deixado, assim como o bem-estar do herdeiro. Pode ser alegado que a manutenção da inalienabilidade viola seus interesses e o impede de fazer uso do patrimônio recebido a fim de suprir necessidades importantes, como é o caso do tratamento da filha. Trata-se de uma justa causa.

Hoje, estando em vigor o Código Civil de 2002, é necessário que a cláusula de inalienabilidade venha acompanhada da devida justificativa no testamento, caso contrário, será considerada ineficaz. Em outras palavras, para ser imposta essa restrição ao bem legado, esta tem de se embasar em uma justa causa, sem a qual será cancelada.

Sabendo que existe uma via para resolver sua demanda, ele se acalma. Não seria mesmo justo proteger um bem de forma extrema, impedindo que aquele que o recebeu em testamento fique impedido de vendê-lo mesmo em caso de comprovada necessidade.

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

maluoliveiraadv201322@gmail.com