Opinião: Ponto final?

Nirlei Maria Oliveira (de Campinas-SP)

Opinião: Ponto final?
Nirlei Maria Oliveira é formiguense, escritora e bibliotecária




Seis da manhã de um dia que promete calor infernal na metrópole. Impaciente e irritada, espero o ônibus que está sempre atrasado e lotado. Todo dia, o mesmo itinerário e cenário com gente a equilibrar sacolas, marmitas, mochilas e, quando chove, sombrinhas molhadas. Essa é a realidade de milhares de mulheres nesse país. Entrar é um sufoco. Combate corpo a corpo por um lugar em pé, tanto faz se a mulher está grávida, idosa ou com um bebê no colo. Sentar em uma poltrona  é um milagre que quase ninguém espera!
Nas minhas elucubrações pseudocientíficas de usuária desse serviço,  tenho certeza absoluta que o ônibus foi planejado para o uso exclusivo dos homens. Eles entram ligeiros, passam à frente da mulherada e vão empurrando, usando a força sem nenhum pudor. Sentam como reis em seus tronos, abrem as pernas, não há espaço para mais ninguém. Apenas alguns são educados e cedem o lugar para as mulheres… são raros.
Pergunta que não quer calar: existe a roupa certa para as mulheres que usam transporte saírem ilesas de algum tipo de assédio e sobreviver ao tormento que é uma viagem em ônibus, trem ou metrô?
Tem dress code, sim!
Decotão, não pode. Roupa justa demais, também não. Saia curta, nem pensar. E shorts? Quase proibido! E haja subterfúgios e camuflagens de tudo que possa despertar interesse e desejo. Melhor se precaver e usar aquela bolsa velha e sem marca de luxo falsificada, uma roupa discreta, quase de freira, bijuterias baratas e artesanais, a carteira escondida com dez reais, celular dentro do sutiã  ou em outras partes do corpo.
 Além desse figurino estranho, existe uma coreografia de contração e vigilância do corpo feminino. Basta ver as mulheres das mais variadas idades segurando as bolsas junto ao peito, olhar atento, músculos tensos, sentidos em alerta.
As meninas, desde cedo, aprendem a se proteger e ficam espertas com os marmanjos que tentam colar em seus corpos. Nessas horas, as mochilas servem de contenção para aqueles que tentam grudar demais. Pisadas nos pés de sujeitos afoitos, além de sobrinhas, que são armas nessas horas e as cutucadas nos indivíduos que querem dormir no seu ombro.  
Relar em outras pessoas é normal, o complicado é quando isso é assédio e todo mundo vê e ninguém fala nada. Ninguém lê ou só finge desconhecer os cartazes sobre assédio e machismo. Sobra pacto de silêncio em qualquer horário. Às vezes, uma passageira corajosa grita e bota o sujeito para fora.
Consigo passar ilesa ou, melhor, sobreviver no corredor polonês. Aquele bem no meio do ônibus, onde todos param e ninguém arreda do seu lugar. O motorista dá uma freada brusca. Sou prensada entre várias pessoas. O motorista desliga o motor e grita — Ponto final!
Ponto final?  Para quem, motorista?
Não para milhares de mulheres extraordinárias que levantam cedo, se espremem no transporte público e enfrentam uma saga diária para sobreviver sem assédio.