Cronicando: De quando eu avuava

Robledo Carlos (de Divinópolis)

Cronicando: De quando eu avuava
Robledo Carlos é representante comercial




Tenho o nome de anjo, meu avô Ulisses que tem o nome de herói, que me deu. Disse que seria meu protetor e me daria um par de asas para voar, eu sou o Gabriel!
Gostava de subir até o pico da montanha, quase sempre antes do anoitecer, apreciava ver o balanço das sempre-vivas em um bailado feliz de mais um dia junto aos ventos. O crepúsculo vem logo e é preciso que me apresse para estar sentado na pedra que aponta a morada dos ventos.
Tenho 16 anos, o ano é 1945. Trago comigo meu canivete e uma beterraba para lanchar na espera pelo crepúsculo. O barulho dos meus velhos sapatos de solado em couros a estrilhaçar gravetos e pedrinhas assim como um moinho em minha cabeça, é interrompido pelo barulho da águia-chilena que vive nas encostas rochosas e íngremes, um canto que parece uma risada, um riso de medo e ao mesmo tempo, de poder que ecoa no vazio de mim e na pedra dura em que apoio as mãos para alcançar o topo. Observa-me como um invasor de sua imensa catedral.
Desperta em mim o sagrado, um pertencimento proibido mas aceitável, daqueles que insisto a adentrar em seus mistérios.
Já bem alto, vejo o rio serpenteando entre as matas. Desconfiado de mim, observa-me como um erudito monástico caminhando entre as pedras que ultrapasso e eu profanando o silêncio que espera a despedida do sol.
Antes mesmo de adentrar na fenda da rocha que guarda o calor do sol quente para a noite, o lagarto estaca vidrado a torcer a cabeça tentando compreender o incauto caminhante, que também o fita.
Subo na pedra que aponta a morada dos ventos, abro as asas igual a águia-chilena, o vento arranha minha cara e eu sinto o cheiro do rio com suas folhas à margem.
Para completar meu voo, a águia-chilena pia bem ao alto pegando as últimas correntes quentes do dia.
O sol, o todo poderoso, despede-se com uma nesga fina como um punhal, esconde dos homens e me deixa a contemplar o que resta de luz sobre os homens.
Eu permaneço de pé, ainda planando sobre a cidade e suas mazelas. Alguém pode ao longe ver-me com asas abertas e dizer ter visto um anjo.
Eu me sinto o anjo que meu avô Ulisses disse que seria, lá em baixo alguém me vê.
Em meus mistérios de solidão, eu voo, sou anjo, sou águia, noutros dias sou riacho.
Aprecio sentado descascando a beterraba que escorre vermelha entre meus dedos, pinga na pedra e escorre pela minha boca.