Crônica: Sobre coisas malcheirosas...

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Sobre coisas malcheirosas...
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Eu queria escrever sobre rosas perfumadas. Infelizmente, entretanto, um “outro” que mora no meu albergue me deu ordem contrária. Disse-me que teria de escrever sobre coisas fedorentas e repulsivas. E quando o “outro” fala não me sobram alternativas. Tenho de obedecer.
Dentre as muitas funções necessárias à preservação da vida, algumas são prazerosas e estéticas, como é o caso das funções digestivas, que são motivo de jantares em que os amigos se alegram. Outras, entretanto, igualmente vitais, são motivo de vergonha e embaraço, como é o caso das funções excretoras. Por isso, envergonhados de que nossas entranhas produzam coisas tão nojentas e malcheirosas, tratamos de realizar tais funções secretamente, sozinhos, longe dos olhos dos outros. Não tenho conhecimento de que jamais se tenham celebrados festivais fecais-urinários, à semelhança dos festivais gastronômicos. Os atos de defecar e urinar são protegidos por uma série etiquetas e rituais cujo objetivo é escondê-los da vista alheia.
Um amigo meu, psicólogo, contou-me do acontecido na cidade do interior onde ele morava, muitos anos atrás. Um mancebo começara a cortejar uma moçoila (era assim que se falava, naqueles tempos...) até ter a permissão do pai-fera para uma visita, ato inicial de introdução à família, necessário para a averiguação das intenções. Tudo transcorria agradavelmente segundo os conformes até que o moço, pobrezinho, sentiu uma terrível e incontrolável dor de barriga, o que é perfeitamente compreensível numa situação daquelas. Vermelho de embaraço pediu licença para ir ao banheiro. Foi, aliviou-se e após a vergonha do barulho da descarga, voltou para a sala. Mas nem teve tempo de assentar-se. Foi imediatamente expulso da casa pelo pai indignado. Não se sabe bem as razões da indignação do pai. Duas são as hipóteses que levanto... Primeira: o pai ficou indignado porque o moço viu o lugar onde sua respeitável família mostrava o traseiro e fazia aquelas coisas inomináveis. Era imperdoável que alguém soubesse que os membros de sua família, mulher e filha, tivessem traseiro e fizessem aquelas coisas. Segunda: o pai ficou indignado pela petulância do moço em fazer cocô na sua casa. O fato é que um casamento que poderia ter sido feliz deixou de acontecer em virtude do exercício natural e necessário das funções excretoras.
Em tempos idos a privada ficava fora da casa. Era a famosa “casinha”. Fezes e urina não podiam ser depositados no sagrado espaço do lar. Nos tempos da minha inocência, quando eu me instruía lendo Readers’ Digest, li de uma mulher que deixou de freqüentar a casa do irmão ao saber que ele, movido pela modernidade, colocara a privada dentro de sua casa. Mas as resistências originais foram vencidas e agora, graças à imaginação dos arquitetos, as privadas são obras de arte e técnica. Elas nunca devem abrir-se diretamente para a sala. Há sempre o perigo de que os convivas ouçam barulhos embaraçosos e sintam cheiros desagradáveis, o que inibiria aquele que estava premido pela necessidade. Visitando um amigo vi, pela primeira vez, uma maravilha tecnológica: um exaustor, colocado na posição exata, cuja função é sugar pneumaticamente as ventilações malcheirosas expelidas pelo orifício escatológico final. Mas, para aqueles que ainda não dispõem de tal maravilha, há os sprays com perfume de lavanda.
O fato é que, sendo cocô e xixi coisas tão nojentas e vergonhosas, eles dão um grande prazer quando expelidos! Quando a gente está “apertado” – vejam como essa palavra descreve bem a situação dos esfíncteres – a gente não quer companhia, não quer gastronomia, não quer poesia, não quer filosofia, não quer liturgia. Só quer uma coisa, uma coisa somente! E quando ela acontece, que felicidade!
Cocô e xixi são tão nojentos que foram transformados em símbolos de agressão e desprezo. Manda-se o outro “à merda” - deseja-se que ele se atole numa piscina de fezes. A enciclopédia do meu pai mencionava um antigo crime denominado “merda-à-boca” que consistia em obrigar uma pessoa a comer merda. E o mesmo vale para a urina. Diz-se, especialmente em gíria militar: “O capitão deu uma mijada no sargento...” Esse costume é universal. No livro Shogun, o samurai japonês deita seu inimigo no chão e urina nas suas costas... Este, deitado e humilhado, sente o líquido quente escorrendo nas suas costas. E teve de deixar-se ser urinado sem protestar porque, caso contrário, uma espada deceparia sua cabeça. Melhor ser mijado que ser decapitado.
Na maioria dos casos as funções excretoras podem ser controladas. Parte da educação das crianças é ensiná-las a controlar cocô e xixi. O fedorento e o nojento devem estar sob o controle da razão e eliminado no lugar próprio, discretamente.
Mas há situações em que a razão se demonstra impotente. Isso acontece quando, por razões incomuns, a pressão interna dos gases e da urina vai crescendo e se torna tão grande que, a despeito dos esforços da razão, a explosão acontece. E é aquela vergonha.
Melanie Klein é uma famosa psicanalista que teve idéias insólitas. Dentre elas, a sugestão de que nossos processos mentais se parecem com os processos fecais e urinários. A cabeça de todo mundo se parece com os intestinos e os rins: produz fezes, urina e gases fétidos explosivos. Não há exceções. Todo mundo. Crianças, jovens, senhoras, juízes, freiras, cardeais. A educação, à semelhança do que acontece com as crianças, nos ensina a nos livrar desse lado malcheiroso e venenoso dos produtos mentais de maneira própria, nos lugares certos. A gente não deseja que os outros sintam o fedor dos nossos pensamentos.
Mas acontece que certas pessoas não aprenderam a fazer isso. Não conseguem controlar seus esfíncteres mentais. Isso, acrescido do fato de que seus processos mentais produzem excrementos em excesso. A fermentação decorrente eleva a pressão interna a níveis cada vez mais altos e, de repente, sem razão aparente, a coisa explode com grande barulho e fedor: Bum! O corpo inteiro se transforma num mecanismo excretor. Saem fezes, urina e gases fétidos por todos os lados: pela fala, pelos olhos, pelo rosto, pelas mãos, pelas pernas. A pessoa se transforma, literalmente, naquilo que ela está expelindo.
E não adianta argumentar. De que me adiantaria dizer a uma pessoa com diarréia, as fezes escorrendo pelas pernas, que ela não deveria estar fazendo aquilo? A força das fezes é maior que a força da razão. Uma pessoa em tal estado “parece” estar falando coisas. Na verdade ela diz coisas: ofensas, mentiras, grosserias, inverdades, obscenidades. Quem ignora os mistérios intestinais da mente pensa que suas palavras exprimem pensamentos. Mas ela não está pensando. Suas palavras não são palavras. São fragmentos de fezes explosivas e jatos de urina envenenada. Daí ser inútil argumentar. Só há uma coisa a fazer: esperar o fim da expulsão dos excrementos mentais.
Passado o vexame das fezes moles e fedorentas escorrendo pelas pernas a pessoa fica aliviada. Aí ela toma um banho, fica limpinha, põe perfume e desodorante e comporta-se como se nada tivesse acontecido. Está feliz. Livrou-se dos seus venenos. Mas o mesmo não acontece com aqueles que foram alvo da explosão. As fezes e urina mentais são diferentes: elas grudam, agarram, igual a Super Bonder. Inúteis os processos físicos e químicos de limpeza. Não há banho, sabonete, detergente ou bucha que resolva. Só há um jeito: é preciso digerir tudo! Eis aí a forma moderna, psicanalítica, do antigo crime de “merda-à-boca” que mencionei.
Mas não há ninguém que goste de comer merda e beber urina, ainda que seja de uma pessoa querida. Faz-se isso por não haver outro jeito. Aí o ódio vai crescendo devagarzinho, devagarzinho... E chega um dia em que o volume e a pressão das fezes e urinas engolidas atingem um ponto tão alto que nenhuma cabeça é capaz de contê-los. Aí acontece a explosão. E tudo começa de novo...
Escrevi isso contra a vontade porque desejava escrever sobre rosas. Mas não tive alternativa. Há momentos em que é impróprio dar rosas de presente. Que adianta perfume por fora se há fedentina por dentro?