Opinião: 40 ANOS DE ‘FIDEL E A RELIGIÃO’

Frei Betto (de São Paulo)

Opinião: 40 ANOS DE  ‘FIDEL E A RELIGIÃO’
Frei Betto é escritor, autor de “O marxismo ainda é útil?” (Cortez), entre outros livros.




Na quinta, 22 de maio, o Centro Fidel, em Havana, que preserva o acervo do líder da Revolução Cubana, promoveu, junto com a Secretaria de Assuntos Religiosos do governo, a comemoração de 40 anos do lançamento de “Fidel e a religião” (Companhia das Letras). Presentes a viúva de Fidel, Dalia, acompanhada dos filhos.

Já traduzido para 24 idiomas e editado em 32 países, o projeto do livro surgiu em fevereiro de 1985 quando participei de um jantar em casa de Chomy Miyar, secretário particular de Fidel. Antes que o Comandante chegasse, manifestei a Lupe Veliz, assessora de imprensa, a intenção de fazer breve entrevista com Fidel para servir de epílogo de um livro sobre Cuba, destinado aos jovens. A reação veio como um balde de água fria: os pedidos de entrevistas chegavam a quase três mil e Fidel priorizava a mídia dos EUA. 

O Comandante chegou após meia-noite, quando o café era servido e os charutos acendidos. Entre os presentes, figuras históricas do país, como Armando Hart, Núñez Jiménez e Eusebio Leal.

Ao ter a oportunidade de abordar Fidel a sós, repeti a proposta. Ele chamou Chomy e indagou como abrir espaço na agenda para a entrevista. O assessor sugeriu maio. De fevereiro a maio o projeto ganhou proporções em minha cabeça. Decidi entrevistá-lo sobre um tema controverso no mundo socialista – religião. Sabia que Cuba era oficialmente ateia e as confissões religiosas encaradas, no mínimo, com desconfiança, à exceção das denominações de matriz africana, consideradas “folclore”.

Ao retornar a Havana em maio, trazia 64 perguntas. Fidel me pediu desculpas, os EUA haviam disparado uma ofensiva midiática contra a Revolução com as emissões, desde Miami, da Rádio e TV Martí, e ele não dispunha de tempo para a entrevista. Senti-me como Santiago, personagem de Hemingway em “O velho e o mar”: ou pesco agora este tubarão ou nunca mais! Tanto insisti que Fidel indagou que perguntas eu gostaria de lhe fazer. 

Havia um tipo de entrevistador que o Comandante evitava, os “intelectuais bibliográficos”, que lhe dirigiam questões recheadas de citações de textos e autores. Talvez me incluísse nessa categoria. Quando li a quinta pergunta – todas sobre a formação religiosa de sua família – ele me interrompeu: “Amanhã começamos”. 

Foram quatro longos encontros noturnos, registrados em gravador. Ao deixar Cuba, sabia que tinha em mãos um conteúdo explosivo: pela primeira vez um líder comunista no poder enfatizava que a religião, considerada pela tradição marxista “ópio do povo”, tem também dimensão libertadora, revolucionária.

Em setembro Fidel me ligou. Pediu que eu fosse a Havana. Ali, para minha surpresa, contou que submetera suas respostas ao Birô Político. E nem todos concordaram com tudo. Eu pensava que o líder da Revolução fosse uma figura inconteste. Disse que, frente às discordâncias de seus companheiros, defendera seus pontos de vista e os convencera a mudar de opinião, exceto numa questão: um marxista poderia ser cristão sem deixar de ser marxista. Antes da resposta dele, eu havia dito que um cristão pode ser marxista sem deixar de ser cristão. Afinal, o marxismo é um método de análise da realidade, uma teoria crítica do capitalismo, e não uma religião.

A resposta de Fidel foi (mal) cortada. Ele havia concordado comigo. Porém, a primeira parte da resposta – “um marxista pode abraçar a fé cristã sem deixar de ser marxista” - foi suprimida.  E o restante da frase - “ambos os casos o importante é que sejam sinceros revolucionários” - dá a entender ao leitor que a recíproca é verdadeira.

 O livro foi lançado em Havana em novembro de 1985. Toda a tiragem de 300 mil exemplares se esgotou em dois dias. No lançamento em Santiago de Cuba havia 10 mil pessoas na praça. Deram-me dois mil exemplares para autografar. Minha mão “engessou” após escrever a 500ª deO efeito do livro foi quase imediato: o caráter ateu do Estado cubano e do Partido Comunista foi substituído pelo laico; as denominações religiosas passaram a ter plena liberdade; Cuba recebeu quatro visitas papais em poucos anos (Francisco lá esteve duas vezes). Os governos socialistas, ao se darem conta do erro de sua postura antirreligiosa, passaram a me convidar para “apagar o incêndio”, como descrevo em “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco). Estive na União Soviética três vezes, na China, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Alemanha Oriental. Era tarde. O Muro de Berlim já desabava implacavelmente.

De qualquer modo, a esquerda comunista passou a reconhecer a religião como uma dimensão importante da cultura popular a ser respeitada e valorizada, e não discriminada. A direita, entretanto, usa a religião como os fariseus e saduceus do tempo de Jesus, para manipular consciências e sentimentos e legitimar a injusta desigualdade social.